Meus filhos me
repudiaram envergonhados,
meu marido ficou
triste até a morte,
eu fiquei doida no
encalço.
Só melhoro quando
chove.
Adélia Prado
A mulher que estava ao lado do rapaz de boné e moletom
cinza e desceu na cidade dos meninos enquanto se estava no troleibus é Dolores
Campana. Coque baixo, batom púrpura e colar em pingentes de três meninas não
deixa enganar. Nota-se pelas botas
gastas também – que aquele calçado é daquele tempo.
Pois bem. Houve caso com ela, deve pensar. Caso no
mínimo singular daqueles bem interessantes para rodas de conversa e grupos de
mexerico em bazar. Relacionamento extraconjugal cujo grande cume da relação não
era coito. Veja só como histórias podem ser interessantes. O elo que sustentava o caso de Dolores Campana
era uma afinidade em comum e que se fazia raro encontrar demais companheiros
para a prática dos feitos naquela região da cidade. Dizemos no teotônio vilela,
zona leste de são paulo, periferia, pertinho de são mateus. Ali prazeres
demoram a se conhecer. Mas a sorte de Dolores Campana é no mínimo digna de
registro a tomar páginas de prodigiosa literatura.
A história não se lembra em que pé começa mas se
consegue dizer que se deu entre o itinerário do dois-oito-cinco,
ferrazópolis-são mateus, onde a vida ganha graça com operários e secretárias
buscando glórias do salário. Sobre a
história também se consegue dizer que se deu início entre as quatro e seis da
tarde, para ser preciso, no sentido da capital. Sabe-se disso porque não
haveria outra possibilidade de encontro entre partes porque um usa coletivo
para trabalho e outro, visitas
esporádicas em boa amizade. Então em dia
desses, Dolores Campana é abordada logo após fechar um Adélia Prado na página
trinta e oito. Bagagem, ela responde com ar surpreso. Os acontecimentos e os
dizeres, lembrou. Como em ousadia, o assunto é insistentemente continuado
naquela tarde de maneira que o assunto se interrompe apenas pela chegada do
ônibus em seu itinerário final. Esta cena
se repetiu por dias, convém dizer até que o caso realmente se torna digno de
prosa. De romances em romances a relação se estreita de um modo que os meros
encontros no corredor metropolitano não são mais sustentáveis e a troca de
telefones é inevitável.
A partir de então, visitas às amizades são constantes e
ligar para Dolores Campana pela noite era inútil pois sua linha permanecia
ocupada durante todo horário nobre. A companhia conjugal de Dolores Campana não
percebia qualquer índice ou suspeita de adultério – ainda que virtual – nestes
hábitos que estava adotando. A intervenção da parte traída se dá mais linhas a
frente – deve-se adiantar antes que dúvidas surtam em qualquer consciente aqui
presente. Quando telefonemas se cansam dos poemas foi preciso algo mais
proximal, os campos de força de ambos e a necessidade espiritual do acalento
mais íntimo se era inevitável.
As terças e quintas, sempre tarde para a noite,
passaram a ser consumidas a dois e em ambientes discretos, mas isso nem sempre.
Os atos podiam ser consumados em qualquer ambiente e foram vistos em público
algumas vezes, pode-se garantir. Encontros cheirados a sândalo e vertigens que
se obtinham eram viciosas. A coisa chegou a seu ápice quando as tardes viraram
alvoradas e finais de semanas possuídos pelas taras e prazeres de um orgasmo
incomum. Lírico. A companhia singular de
Dolores Campana chegou a mudar seu endereço para que a proximidade permitisse
ainda mais momentos nesta gangbang das linguagens. E quando o ponto é máximo e todos estão contentes, de
súbito Dolores Campana é descoberta por conta de desculpa mal dada e plano
falho. Não se sabe o que ocorreu dentro de sua casa, em seu leito e banheiro.
Sabe-se que após tantos desvarios e espasmos cada qual
toma sua rotina antiga sem os prazeres poéticos de um caso pouco sabido.
Cruzamos frequentemente com Dolores Campana que
continua a mesma mas agora não permite que mais ninguém flerte com sua
intimidade literária.
Ela ainda usa as mesmas botas. As gastas. Daquele tempo.
Orações A Saturno é a nova coluna de sábado do Faroeste. Doses de prosa e poesia contemporâneas para sábado, domingo e a semana toda.
Eu sou Edhson Brandão, 27, paulistano e um gateiro de primeira. Sou autor de "Letra de mão e mais algumas historietas escolares" (Giostri, 2016), colaboro com algumas revistas virtuais, toco a Revista Semeadura e agora estou aqui no Faroeste!
Saudações saturninas e vamo-que-vamo!
Até sábado que vem.
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Orações A Saturno é a nova coluna de sábado do Faroeste. Doses de prosa e poesia contemporâneas para sábado, domingo e a semana toda.
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Saudações saturninas e vamo-que-vamo!
Até sábado que vem.

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