Neusa Maria
Fagundes Peres
61, viúva, pensionista.
Claridão. O
primeiro sintoma de vida pós-uterina, a certeza do início. Claridão e luz e o
tempo já pode ser contado.
Acenderam a
luz daquele quarto branco. Dez e meia da manhã. Quisera ser um parto, mas era
gestação. Novamente. Dona Neusa vivia aqueles duros meses como uma segunda
gestação. Não estava sendo fácil. Mas não podia reclamar, pois tudo poderia ser
pior. Ainda que naquele ambiente de cama hospitalar, visitas a partir das
catorze, enfermeiras, veias, cadeira dura para acompanhante, terços, bandejas
sujas, oxímetro de pulso, livros, chave de carros, eletrocardiográfico, tudo
ali – era bonitinho – nas contas do convênio. O quarto quinze da ala sete
no corredor três tem sido seu principal destino naquelas últimas estações. Não
era necessário tanto tempo com acompanhante, já lhe disseram, nesses casos o
próprio serviço do hospital cuida de colocar alguém para constante observação.
Mas mesmo assim, sentia-se melhor indo religiosamente lá. Gastar horas de dias
e noites ali, sentada. Vez e outra lia alguma coisa, rezava mais um pouco,
conversava e ligava a TV. A solidão foi um presente dado sem nada para ser
recompensado. Quando fazer não tinha, parava os olhos em cima da filha. Ali.
Repouso eterno. Chorar já chorou demais. Convenceu-se de que lágrimas não regam
esperanças e sim dores. Olhava. Em cada traço percebido pelos seus velhos
olhos, já gastos pela vida, recordava um pedaço de história. Ou um dilema. Ou
uma briga. Um abraço. Um beijo. Cortesias. Hoje eram só memórias.
Dona
Neusa costumava sair de sua casa as dez da manhã porque dava tempo de rezar uma
ave-maria, pegar o pão e recolher as roupas do varal dormidas na lavanderia.
Depois das dez era bom porque se precisasse passaria no banco, já pagava alguma
conta ou sacaria dinheiro. Pensão do marido. Então seguia pela Hortências até o
ponto. Lá pegava o cento e nove, São Lourenço, que parava na porta do hospital.
Então dava bom-dia para as meninas do hospital, comentava algo sobre o turno do
dia, tomava o elevador, cumprimentava os enfermeiros, se desse falava com o
doutor Jair, se não seguia até o quarto e entrava na porta quinze. Todo dia ali
era lugar de se consumir esperanças. Mas, até o então, frustradas. Porém sempre
agradecia pois houve dias em que não pôde entrar naquele quarto e nem em
qualquer outro da ala sete. Houve dias em que teve que subir um andar a mais,
esperar pelo horário espremido da visita e pode ficar com a filha por poucos
minutos porque na UTI funcionava assim. Com o coma estável foi possível
descê-la para este quarto, de agora. E por menos que seja encontra-la no ali e
no agora era confortável. Jamais deixaria a filha. Era mãe. E todo mundo sabe
que prova máxima de amor na mulher é o ser mãe. O elo nu existente ente uma
criatura, geradora, e outra, gerada, é a aliança mais forte do ser humano.
Ninguém separa o que as horas colocaram juntas. E por mais descrenças que já
quiseram impor a Dona Neusa, ela sempre esteve firme. Um dia acorda porque Deus
é justo. Alguns já contavam dias, deram anos contados de vida à Joaquina. Que
absurdo. Vegetava, morta-viva, se desligassem os aparelhos, adeus e tudo mais.
Chegaram a discutir sobre eutanásia. Dona Neusa nunca ficava quieta, persistia
na sua fé. Porque Deus ministrava as coisas com perfeição e se era pra ela,
Neusa, gerar a mesma filha duas vezes ela o faria. Mas a verdade é que esta
gravidez tinha sabor de angústia. As olheiras que o digam. Tantas noites sem
dormir, remédio para a pressão, taquicardias, formigações, mas choros não.
Bastavam.
[...]
Trecho do romance interrompido "As horas da vida".
* *
Orações A Saturno é o templo da linguagem pragmática sem a moral do mundo que o perturba. É um alento. Algo que eclode. Não sei. Um out de si no tempo da palavra. É sábado, todo sábado. São rezas para deus-palavra. E isso é tudo, quando não há nada.

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