porque mais não veio
[edhson j. brandão]
− Não, Italo.
Não é assim que se resolve os problemas. Eu já te falei antes. Por que você não
me chama quando acontece uma coisa dessas? Você acha que pode resolver sozinho.
Por que não me chamou, hem?
− Porque você
não estava aqui.
..
Dormiu mal mas
acordou como em qualquer dia. A espuma amarela do colchonete ainda fedia a mijo
mas tudo fica muito natural depois do costume. De pés sujos, acordou assim.
Despertado pelos cutucos dos dedos do pé da mãe que fervia uma meia caneca de
leite no fogãozinho industrial. Bora, moleque, cê tem aula. Vamo, levanta! Eu
não to pedindo, to mandando, caralho! Puxado pelo ombro da camiseta esgarçada
ficou de pé forçosamente. Uma bosta de vida, deveria pensar, mas com a idade
que tinha só podia discorrer que tudo era chato. O leite fervido com pequenas
natas numa caneca de plástico era desjejum. O prato principal ele teria na
escola. Bora, cata suas coisa e some. Eu só volto a noite então é pra ficar por
perto, tendeu? Tchau. Só lavou o rosto e nem teve tempo pra odiar e tomou a
rua. Na escola alguém sentiria sua falta.
...
Você não tá bem.
Não to. Que foi? To preocupada. Com o que? Um aluno meu. Aquele lá? É. O que
aconteceu? Está faltando. Não apareceu ainda essa semana. Mas não é bom? Você
sempre disse que ele dava trabalho, bagunça muito. Não é melhor sem ele? Não.
....
Um filho da puta
aquele lazarento. O garoto teve o maior trabalho de fazer quinhentos paus em
duas semanas e o viado do Marleyson não lhe vendeu a porra do 38. Correu gira
com duas dúzia de sacos de pó entre a Vila Curumim e a Varginha, dormiu na
belina velha perto do beco da onça e despistou três viaturas com o cu na mão.
Falou com o Dundi que iriam a mão livre mesmo. O Dundi levaria uma faca e já
era.
Pegariam o velho
tiozinho da ecosport no primeiro farol depois da saída do shopping. Dez e
pouco, a saída que dava para a alameda vitória era escura e o mais trouxa se
fodia. Valeu, falou.
......
Não tá indo pra
escola de novo. A mãe já foi solta, falta mais o que? Ela já passa no CREAS. Eu
liguei pro Valdir, ele tá com a perua pra dar uma olhada no barraco dela. A
gente não tem sossego mesmo. Olha! É um bandidinho já, meu. Cê acha o que? Dá
uma ligada na 74. Se bobear ele tá lá. É, só dez anos mas fazer o que.
.......
Percebeu que ele
estava na fila e ficou mais aliviada. Correu antes do sinal até seus alunos
para olhá-lo. Estava um pouco mais limpo graças a Deus. A pasta dele estava
cheia de atividades em branco mas o dia correu limpo e o menino estava num
desempenho tão bom que dava pra desconfiar. Brigou pouco. Escreveu listas, fez
continhas com reserva, treinou letra de mão e até a sondagem adaptada de
história. Sua alegria tinha um fundo de tristeza. Foi tentado a conversar, ela
queria muito ouvir. Nada. Passando a mão sobre os cabelos lisos, pretos e secos
ela disse que queria ele sempre ali, que era tão bom quando ele aproveitava a
aula. Que ela gostava da presença dele e que era importante para seu futuro mas
não soube lidar com a pergunta dele:
− Que futuro,
professora?
........
Isso é hora,
moleque do caralho? Vagabundo, viado arrombado! (tapa) To que nem uma loca
fazeno meus corre e você por aí! (tapa) Onde ce tava, hem? Porra, seu otário!
Fala comigo, seu merda (tapa)! Eu sou sua mãe e não uma chocadeira. Eu to
correndo pra nós dois, tendeu? (começo de choro). Cê já tem seu pai e eu de
bandida e vai pra jaula também? (chora) Para de ser retardado. (acende o
cachimbo e fuma enquanto ele chora sem ruído e vê ela se drogar como alívio.
Foi a última vez que a viu).
..........
Teve um raio de
uma denúncia de que dois menores estavam assaltando o Condomínio Intense na
Vila Pedreira. O Prestes foi no volante dando o grau de cento e vinte por hora
na Kubitschek e avançamos oito quadras em uns dois minutos. Chegamos lá e os
menores estavam dentro do Sentra. O depois você já sabe, viu no jornal. Eu não
falo mais depois daqui, sinto muito.
...........
Bolsa no sofá,
corrida pro banheiro. Joga uma água no rosto. O estomago embrulhado pode ser
resolvido com o omeoprazol. Angústia: ele não apareceu de novo. Na semana
passada Italo tinha dito que não voltaria mais, ela achou que era mentira. Não
quis ligar a TV, não quis olhar a internet. Fechou as cortinas e dormiu.
...........
Riu como medo e
incerteza dos instantes
Quem viu, viu
Quem não foi só
deve sentir muito
Estrela de mil
pontas
No alto do crime
Criança não tem
idade
Despediu-se sem
o tempo do tchau
Um amém sem
glória, sem benção
#partiu
malandragem
Pro mundo das
infâncias
onde quem tem
ódio
Não entra
.
Derrotada ao
saber, deu sua aula de gramática em luto. O pesar das outras crianças e a culpa
indevida deixou o ambiente nefasto. Como tantos e poucos ele deveria estar ali
sentado entre as demais brigando ou xingando, nos seus palavrões, gírias e
ameaças e mesmo em ataques de raiva. Deveria estar ali mesmo com broncas,
stresses, ritalinas ou síndromes de Bournot. Que risca o giz faz, que página o
livro abre? Sem sentido, cumpriu o horário naquele dia sem ver por que nem pra
quê. Ninguém comentou na aula. Mas nos entornos da escola os alaridos tinham só
um assunto. O primo dele faltou, o que poderia dizer. Entre os colegas de
trabalho: ruptura. Muitos acharam que aquele era mesmo seu destino, outros
enxergavam injustiça. Só o caderno de Ítalo sobrou sobre a estante ao fundo da
sala. Só suas letras disgráficas restaram em uma história de derrotas. Apenas
as tentativas de letramento de uma docente sobraram em um compêndio de
frustração. Tudo por quê, ela queria saber ao fim do dia. Tudo por quê?
Tudo porque ele
não estava ali? Não. É crueldade e eufemismo atribuir responsabilidades a
apenas um aldeão. Uma escada de erros e perdemos crianças, meninos, em
desgraças habituadas a adultos. Ele estaria ali se lhe houvesse outra opção.
Mas não estava pois não houve. Uma linha vermelha no diário de chamada. Uma
reta sem fim nos dias do tempo porque mais não veio.
* *
Orações A Saturno é o templo da linguagem pragmática sem a moral do mundo que o perturba. É um alento. Algo que eclode. Não sei. Um out de si no tempo da palavra. É sábado, todo sábado. São rezas para deus-palavra. E isso é tudo, quando não há nada.

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