Morreu foi tarde aquela velha
maldita do quarto andar. Víbora. Cobra de uma figa. Achei foi pouco o câncer
que comeu todas as suas tripas. Pagou seus pecados em vida e eu comemoro porque
acho justo.
Quem deste condomínio nunca foi
vítima das perversidades delicadas dela que não pague mais as taxas de água e
serviço. Somos poucos. Quantos mal agouros, quebrantos e olhos gordos não
quebrei em reza vindos daquela mandingueira? Velha feiticeira molestava a
cabeça das crianças criando lombrigas e bichas por pura crueldade. Seu cabelos
ao ralo, fio a fio, foram tomados pela justiça do mundo porque aqui se faz e
aqui se paga.
Não vou me esquecer tão fácil das
vontades que passei provocadas por aquela indecente. Imagine só se isso é coisa
que se faça. A sua janela ficava quase em frente a minha, mesmo eu morando no
terceiro andar porque o solo daqueles prédios era desnivelado. O edifício do
apartamento dela era sob um pequeno morro o que deixava seu primeiro andar nas
metades do segundo andar do prédio paralelo, o que moro. Estou aqui há vinte e
sete anos, olhei pra essa cara rabugenta e mal-lavada desde os três. Ainda
pequena, me espreitava na janela da sala para observar o movimento dos
condôminos e das fofocas da manhã enquanto as donas de casa paravam, próximas à
escada, suspendendo suas bacias vazias entre as ancas e punhos. E era só me ver
na espreita que a maldita começava. Em uma simpatia ardil chamava a minha
atenção com bom-dia-menininha-linda. Em suas mãos sempre um doce, um pote de
sorvete, um pedaço de bolo confeitado ou iogurte rosa. Perguntava da minha vida
e da minha família enquanto se deleitava nos quitutes industrializados que
vendia no Nagumo. Lambuzava seus dedos propositalmente e os lambia olhando para
mim, quase que sexualmente, e soltava elogios à comilança enquanto me ouvia ou
dizia suas bobagens domésticas.
Tinha um filho quase da minha idade
com quem eu quase não brincava. Moleque chato, metido a rico. Só apanhava dos
meninos do bloco bê e cê. Insuportável. Mas a merda se dava quando chegava
agosto e lá pelos treze, catorze dias do mês os convitinhos de festa do
Corinthians começavam a chegar por baixo das portas das famílias que tinham
crianças no condomínio. Todas menos a minha. Aliás, menos a minha família e a
do Jorge. Eu sabia porque, do Jorge já não sei.
Era o cúmulo: dias antes já se viam
os meninos maiores e os moços rapazes bonitos descendo com os sofás dela para
sua garagem. Logo depois, enquanto as demais crianças e eu brincávamos nas
quadras e corredores, passavam a jararaca com o filho e mais gente de fora
carregando sacolas, imagens em isopor, sacolas de bexiga e fardos de
refrigerante. Tudo Convenção. Nisto não me queixo por nunca ter sido convidada.
Odeio refrigerante barato. Os comentários começavam, os colegas contavam os
presentes que compravam porque quando se recebia convite de papel para uma
festa o presente era obrigatório. Aprendi assim. E eu lá, sobrava, quando
sentada balançando minhas pernas equilibrando os chinelos numa brincadeira
solitária. Então, depois de muitos preparativos e angústias, nas tardes destes
sábado, das quatro a seis todas as crianças sumiam. Quando chamadas, sempre era
recebida por adulto que dizia que Isadora tá no banho, Juninho se trocando e a
Rafa já saiu. Restava eu chutando bolas esquecidas, sozinha, tentando algo no
trepa-trepa ou jogando pedras em cima dos telhados de eternit das garagens. Eu
me era tão órfão mesmo com meus pais vivos e queridos na minha casa. A canseira
chegava e eu então subia pra casa. E quando dava sete horas é que o inferno
começava. O som era ligado. Tocava Sandy e Junior, Xuxa, Eliana e os sucessos
daquela época. As escadas que davam acesso ao apartamento da mocréia se
enchiam. Todo mundo comendo e bebendo. As crianças, do prédio, da rua, da
escola e parentes dela ficavam pra cima e pra baixo com coxinhas, pãezinhos de
carne louca e copos de refrigerante. Eu sabia disso tudo porque espiava da
janela. Mas nestas vezes pela da cozinha que era mais discreta. Um dia desses,
deveriam ser nos nove anos do menino, eu espiei pela sala. Olhei tudo aquilo
com a inveja que toda criança tem quando vê os outros sorrindo e ela não. Pois
foi quando a velha me viu, naquela época nem tão velha assim, concordo. Então a
velha me viu, sorriu cinicamente. Ela segurava uma bandeija de comes que devia
estar servindo. Então, ela toma algo da bandeija – brigadeiros, beijinhos ou
cajuzinhos, não lembro – e come olhando pra mim. Come e me olha. Mastiga
deliciosamente e degusta com louvor cada sabor diluído em suas papilas
funestas. Vagabunda. Após consumir o ato, com o mínimo de dignidade, fecha a
janela interrompendo minha assistência.
Eu não lembro de muito depois, mas
lembro do mal-estar e dos enjôos que eu sentia. Lembro da vontade de nada que
me dava depois daquelas cenas. Lembro de pedir bolo e brigadeiro pra minha mãe
e ela dizer depois. Lembro de pedir que meu pai me levasse a uma festa e ele
respondendo que o aniversário do Carlinhos estava perto. Lembro do terror que
tinha ao passar por aquela porta quando tinha que dar um recado à Marta do
quinto andar. Lembro-me do medo que tinha de passar vontade. Vontade.
Que o fresco da terra tomem seu
corpo como minhas fomes e desejos tomaram meu ventre. Descanse, velha, enquanto
eu deleito o vazio que você faz.
*

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